28 de novembro de 2009

O Amor e a Loucura

Contam que há muitíssimos anos se reuniram alguns sentimentos e algumas qualidades do Homem. Quando o Aborrecimento bocejava por terceira vez, a Loucura propôs: - Vamos jogar às escondidas.

A Intriga levantou-se incomodada, e a Curiosidade, sem poder conter-se, perguntou: - Às escondidas? Como se joga? - É um jogo onde eu tapo a cara e começo a contar, desde o um até ao mil, enquanto vocês se escondem. Quando acabar de contar irei à vossa procura até que vos encontre – explicou a Loucura.

O Entusiasmo dançou de contentamento e a Alegria deu tantos saltos que acabou por convencer a Dúvida, e inclusivamente a Indiferença, a que nada nunca lhe interessava. Mas nem todos quiseram participar. A Verdade preferiu não se esconder: - Para quê? – disse – Se no final sempre me encontram.

A Soberba pensou que era um jogo muito idiota. No fundo o que a incomodava era que a ideia de jogar não tinha sido dela. E a Covardia preferiu não se arriscar.

A Loucura rapidamente começou a contar. A primeira a esconder-se foi a Preguiça, que, como sempre, se deixou cair na primeira pedra que encontrou. A Inveja foi atrás do Triunfo, que através do seu próprio esforço tinha conseguido subir ao cimo da árvore mais alta.

A Generosidade quase não conseguia esconder-se. Cada sítio que encontrava parecia ser maravilhoso para algum dos seus amigos. O lago cristalino para a Beleza. A ranhura de uma árvore era perfeita para a Timidez. Uma rajada de vento pareceu-lhe magnífica para a Liberdade. Finalmente, depois de pensar primeiro em todos os outros, a Generosidade acabou por se esconder num pequeno raio de sol.

O Egoísmo, pelo contrário, encontrou um sítio muito bom desde o início. Era arejado, cômodo, mas somente para ele. A Mentira escondeu-se por detrás do arco-íris, e a Paixão e o Desejo entre os vulcões.

Quando a Loucura já quase acabava de contar, o Amor ainda não tinha encontrado um sítio para se esconder, pois todos os sítios estavam ocupados. Até que acabou por ver um roseiral e decidiu esconder-se entre as suas flores.

- Mil! – gritou a Loucura. E começou a procurar um por um. A primeira a aparecer foi a Preguiça, que estava somente a três passos. À Paixão e ao Desejo encontrou-os no vibrar dos vulcões. Num descuido encontrou a Inveja e, claro, também o Triunfo. Pelo Egoísmo nem teve de procurar, pois ele saiu sozinho do seu esconderijo que resultara ser um ninho de vespas.


A Loucura, de tanto caminhar, sentiu sede, e ao aproximar-se do lago descobriu a Beleza. Encontrar a Dúvida foi muito mais fácil. Encontrou-a sentada ainda por decidir onde se iria esconder. E assim os foi encontrando a todos. O Talento estava entre a erva fresca. A Angústia numa cova escura. A Mentira atrás do arco-íris. E até encontrou o Esquecimento, que se tinha esquecido que estava a jogar às escondidas.

Mas somente o Amor não aparecia por lago algum. A loucura procurou por detrás de cada árvore, debaixo de cada nascente da terra, no cimo das montanhas. E quando já se preparava para se dar por vencida, viu o roseiral. Apanhou um pequeno pau e começou a mexer as ramas. De repente, ouviu um grito de dor. Os espetos tinham ferido os olhos do Amor. A Loucura não sabia o que fazer para se desculpar. Chorou, suplicou, implorou, pediu por perdão, até que prometeu acompanhá-lo sempre.

Desde então o Amor é cego e a Loucura sempre o acompanha.


Crédito da imagem: Stina, http://echo2me.deviantart.com/